História De Israel – Teologia 31.260
Livro Décimo Nono
CAPÍTULO 1
CRUELDADE E LOUCURAS DO IMPERADOR CAIO CALÍGULA. DIVERSAS
CONSPIRAÇÕES FEITAS CONTRA ELE. CHEREAS, AJUDADO POR VÁRIOS
OUTROS,
MATA-O. OS ALEMÃES DA GUARDA DESSE PRÍNCIPE MATAM EM SEGUIDA
ALGUNS SENADORES. O SENADO CONDENA A SUA MEMÓRIA.
795. O furor do imperador Caio não se estendia então somente
aos judeus de Jerusalém e das regiões vizinhas, como acabamos de ver. As terras
e os mares gemiam sob a sua tirânica dominação, e, dentre as muitas províncias
sujeitas ao Império Romano, não havia uma sequer que deixasse de lhe sentir os
funestos efeitos. Os males que ele as fazia sofrer chegaram a tal excesso que
nada de semelhante se vê em história alguma. E a própria Roma não foi tratada
menos desumanamente que as outras cidades.
Nessa opressão generalizada, porém, parecia que ele tinha um
prazer particular em endereçar a sua raiva contra o que havia de mais
importante e ilustre. As famílias patrícias, os senadores e os cavaleiros — os
quais não eram inferiores àqueles em dignidade e em riqueza e eram tão
considerados quanto os senadores pelos outros cidadãos — sofriam as maiores
perseguições. Ele não se contentava em mandá-los para o exílio, em submetê-los
a mil ultrajes e em despojá-los de seus bens, mas chegava a tirar-lhes a vida.
E os bens confiscados aos que ele mandava matar eram como uma recompensa que
ele dava si mesmo por haver tão cruelmente derramado o sangue deles.
Mas, se esse príncipe era tão bárbaro, não era menos
extravagante. Não lhe bastava receber de seus súditos todas as honras que se
podem prestar a um homem.
Ele exigia que o reverenciassem como a um deus e, quando ia
ao Capitólio, que é o mais célebre de todos Templos de Roma, tinha a insolência
de chamar Júpiter de irmão. Dentre tantos outros sinais de sua loucura, nenhum
houve mais patente que a esquisitice de ir a pé enxuto de Putéoli até Misena,
duas cidades da Campanha separadas por um braço de mar de trinta estádios.
Julgou que era indigno dele ir de uma a outra cidade apenas em galeras e que o
mar não lhe devia ser menos sujeito que a terra. Assim, mandou construir uma
ponte de um promontorio a outro e passou por ela num carro soberbo, com a
alegria de pensar que aquele caminho completamente novo era digno da majestade
de um deus, tal como ele se imaginava.
Não havia Templos na Grécia que ele não tivesse despojado do
que possuíam de mais valioso. Ordenou, por um edito, que lhe trouxessem tudo o
que neles encontrassem de quadros raros, preciosas estátuas e outras coisas de
valor consagradas aos deuses, e com eles encheu o seu palácio, os jardins e as
casas de recreio que ele mantinha na Itália, porque, dizia ele, assim como Roma
era a cidade mais bonita do universo, era justo que aí se reunisse tudo o que
havia de mais belo no mundo. Atreveu-se mesmo a ordenar a Mêmio Regulo que lhe
enviasse também a estátua de Júpiter Olímpico, que toda a Grécia venerava com
honras extraordinárias e que é obra de Fídias. Mas essa ordem não foi
executada, porque os escultores disseram que era impossível transportar a
estátua sem quebrá-la. Pelo que se afirma, Regulo ficou tão espantado com os
diversos prodígios que aconteceram que não se atreveu a removê-la. Então
escreveu ao imperador, o que lhe teria sem dúvida custado a vida, se a morte de
Caio não o tivesse livrado daquele perigo.
A horrível loucura desse príncipe, todavia, não se detinha
aí. Ao nascer-lhe uma filha, ele a levou até o Capitólio e colocou-a sobre os
joelhos da estátua de Júpiter, como se aquele deus fosse parente dele, e teve a
insolência de dizer que a criança tinha dois pais, mas permitia que se julgasse
qual dos dois era o mais importante. Vemos todas essas coisas com horror, e no
entanto eram toleradas. Ele não teve vergonha de permitir aos escravos que
acusassem os seus senhores de toda espécie de crimes. Essas temíveis acusações
eram apoiadas pela sua autoridade, e bem se sabia que lhe eram agradáveis.
Pólux, um dos escravos de Cláudio, foi desse número. Ele teve a ousadia de
depor contra o seu amo, e esse bárbaro imperador ainda fez questão de ser um
dos juizes do próprio tio, na esperança de fazê-lo morrer como criminoso — o
que, todavia, não conseguiu.
796. Tão odioso proceder encheu o império de caluniadores,
elevou os escravos acima de seus amos e causou um número infinito de males. Por
isso, fizeram-se várias tentativas contra a sua vida, uns pelo desejo de
vingança, devido ao que os havia feito sofrer, outros, para evitar o perigo que
os ameaçava, pois de nenhuma outra forma, senão tirando-o do mundo, seria
possível restabelecer a autoridade das leis, a segurança dos cidadãos e a
felicidade pública. E, nesse desejo comum a tantos povos, a nossa nação seria
beneficiada mais que qualquer outra, pois não haveria como impedir a sua
completa ruína se esse reinado infeliz continuasse. Isso me obriga a relatar de
modo muito exato a maneira como esse miserável príncipe terminou a sua vida,
para manifestar como e com quanta bondade Deus alivia os aflitos e para ensinar
àqueles que estão elevados ao mais alto grau de felicidade a se moderar na sua
glória e a não desonrar a própria memória com ações vergonhosas e cruéis, na
ilusão de que nada será capaz de destruir a sua boa sorte.
Fizeram-se três distintas conspirações para libertar o mundo
do jugo insuportável desse tirano, e todas foram organizadas por homens de
grande coragem. Emílio Rego, nascido em Córdoba, na Espanha, foi o chefe da
primeira. Cássio Chereas, que era oficial de uma das companhias de guarda do
imperador, liderou a segunda. Amnio Minuciano idealizou a terceira. E todos
eles valeram-se de cúmplices.
Caio era o objeto comum do ódio deles, porém motivos
diferentes os levaram a atentar contra a sua vida. Rego foi a isso motivado
pela sua generosidade natural, que não podia tolerar a injustiça. E, como era
extremamente franco, não teve receio de comunicar o seu intento aos amigos e
aos que ele julgou corajosos o bastante para aprová-lo. Minuciano foi levado a
conspirar em parte pelo desejo de vingar Lépido, seu íntimo amigo e homem de
grande mérito que Caio condenara à morte, e em parte pelo temor de ser tratado
do mesmo modo por esse príncipe cruel, pelo qual ninguém podia ser odiado sem
correr risco de vida. Chereas tomou a sua decisão tanto porque não podia mais
tolerar que Caio lhe censurasse a ingenuidade quanto pelo fato de que servir o
imperador significava estar exposto a um perigo constante, sabendo-se como ele
costumava recompensar as suas amizades. Nessa diversidade de movimentos, porém,
todos estavam de acordo no desígnio de libertar o mundo daquela soberba e cruel
dominação e de merecer a glória de ter arriscado a vida para proporcionar uma
felicidade tão geral e auspiciosa. Foi Chereas, entretanto, quem dentre eles se
empenhou com mais ardor, quer pelo desejo de conquistar fama, quer porque o seu
cargo lhe dava mais ocasião de se aproximar de Caio.
Era o tempo das corridas de cavalos, que se realizam no
hipódromo, e dos jogos chamados circenses, tão ao gosto dos romanos. Como o
povo que lá se encontrava, em grande número, tinha o costume de pedir graças ao
imperador com a certeza de as obter, toda aquela multidão rogou a Caio, com
grande insistência, que os aliviasse de uma parte dos impostos. Mas ele, em vez
de atendê-los, ficou tão irritado que ordenou aos guardas que matassem os que
se manifestavam mais ruidosamente. Eles assim fizeram no mesmo instante, e,
como a vida é mais preciosa que os bens, o povo ficou tão espantado ao ver tanto
sangue que não insistiu mais.
Esse horrível espetáculo animou Chereas ainda mais a
executar o seu projeto de libertar os homens daquele animal feroz, que de homem
tinha apenas o nome. Pensara muitas vezes em matá-lo quando estava à mesa e só
não o fizera na expectativa de uma ocasião mais propícia. Havia muito tempo que
ele estava no cargo, e o imperador o encarregara de receber os tributos. Mas
como muitos dos contribuintes eram tão pobres que já deviam mais de um ano de
impostos e a compaixão que tinha deles não lhe permitia insistir, Caio se
irritava e fazia-lhe constantes censuras, chamando-o de indolente e efeminado.
Quando ele vinha perguntar ao imperador qual era a senha do dia, ele, por
gracejo, escolhia uma palavra que só se poderia adaptar a uma mulher de
natureza reprovável, embora o próprio Caio não tivesse vergonha de se vestir de
mulher em algumas cerimônias que havia instituído ou de se pintar e adornar com
os enfeites delas, de modo que podia mesmo se passar por uma mulher.
O ressentimento de Chereas por esse ultraje aumentava ainda
por causa das zombarias de seus companheiros, que não podiam deixar de rir
quando ele lhes trazia a senha, já sabendo de antemão que seria algo daquela
qualidade. Assim, não podendo mais suportar semelhante opróbrio, ele atreveu-se
a declarar o seu intento a alguns companheiros. A primeira pessoa a quem ele
revelou as suas intenções foi um senador, de nome Pompédio, que já havia
passado por todos os cargos de maior honra. Ele era da seita de Epicuro e por
isso pensava apenas em viver com tranqüilidade.
No entanto, um inimigo seu, de nome Timídio, acusou-o de
ultrajar com palavras o imperador, alegando como testemunha uma comediante
muito famosa, de nome Quintília, pela qual Pompédio estava apaixonado. Mas a
acusação era falsa, e a mulher recusou-se a mentir, pois estava em jogo a vida
de um pessoa que a amava, isso obrigou Timídio a pedir que ela fosse torturada.
Caio, que jamais deixava de se enfurecer em tais circunstâncias, ordenou a
Chereas que o fizesse imediatamente. Ele costumava encarregar Chereas de
semelhantes tarefas, convencido de que, em função das censuras que lhe movia
por causa de sua frouxidão, ele as executaria com mais rigor que qualquer
outro.
Quando levavam Quintília para ser torturada, ela encontrou
um daqueles que sabiam da conspiração e pisou-lhe no pé, para animá-lo a ter
coragem e o certificar de que nenhum tormento seria capaz de fazê-la confessar.
Chereas, embora contra a vontade, porque era obrigado, torturou-a rudemente. A
mulher sofreu com uma serenidade extraordinária, e ele depois levou-a até o
imperador, num estado tão deplorável que, embora Caio tivesse um coração de
bronze, não pôde deixar de ficar comovido. Assim, ele a declarou inocente — e
também a Pompédio — e ainda mandou que lhe dessem dinheiro, para consolá-la
pelo que havia sofrido, pois demonstrara não menos coragem nos tormentos que
felicidade nos seus dias mais prósperos. Essa atitude de Caio causou sensível
dor a Chereas, porque o fazia passar por cruel, obrigando-o a reduzir uma
pessoa a tal estado que causara compaixão ao mais desumano dos homens.
Incapaz de conter-se, ele resolveu falar a Papiniano, que
desempenhava um cargo semelhante ao seu, e a Clemente, que também tinha um
cargo no exército. Disse ele, dirigindo-se a Clemente: "Vós sabeis com que
afeto e fidelidade velamos pela conservação do imperador e como, graças aos
nossos cuidados e esforços tantas conspirações contra ele foram descobertas, as
quais custaram a vida a uns e levaram outros a tormentos tão cruéis que ele
mesmo chegou a ficar compadecido. Mas seriam essas tarefas dignas de nossa
profissão e de nossa coragem?" Clemente nada respondeu, mas o rubor que
lhe apareceu no rosto demonstrava muito bem o quanto ele se sentia envergonhado
por estar desempenhando semelhante mister e que somente o medo o impedia de
condenar a loucura e o furor de Caio.
Chereas retomou o seu discurso com mais veemência e, depois
de mencionar todos os males com que Roma e o império eram oprimidos,
acrescentou: "Eu sei que a causa disso tudo é atribuída ao imperador, mas
na verdade é a Papiniano, a mim e a vós, Clemente, que Roma e toda a terra
deveriam responsabilizar por tudo o que sofrem, pois somos os executores das
cruéis determinações de Caio. E, podendo fazer cessar os efeitos de sua raiva
contra os nossos concidadãos e contra todos aqueles que lhe são sujeitos, não
temos vergonha de sermos nós mesmos os seus ministros, agindo como carrascos, e
não como soldados, e de usar armas não para a conservação de Roma e do império,
mas para a manutenção desse tirano que não se contenta em subjugar os corpos,
mas quer também tirar aos homens a liberdade de pensamento, obrigando-nos a
manchar continuamente as nossas mãos com sangue deles e a fazê-los sofrer
tormentos nos quais não se pode pensar sem horror. Vamos esperar que ele exerça
sobre nós a mesma crueldade com que nos faz tratar os outros? Ou julgamos que
dela nos poderemos esquivar, pela obediência que lhe prestamos? Em vez de nos
agradecer, ele suspeita de que fazemos tais coisas obrigados e está tão
acostumado aos assassínios que estes se tornaram o seu maior divertimento. Por
que então imaginaríamos que, nessa multidão de inocentes vítimas de sua
crueldade, seríamos os únicos capazes de escapar ao seu furor? Não nos
enganemos: consideremo-nos já condenados, a menos que asseguremos a nossa vida
com a morte dele e, salvando-nos, salvemos todo o império".
Clemente aprovou os desígnios de Chereas, mas o aconselhou a
mantê-los em segredo, pois, se alguém os descobrisse antes que fossem postos em
prática, a morte deles seria certa. Era de opinião que aguardassem, até que o
tempo fizesse aparecer uma oportunidade favorável. E, ainda que a velhice, que
lhe começava a gelar o sangue nas veias, o fizesse abraçar conselhos mais
seguros, confessava que não podia haver argumentos mais honestos nem mais
generosos que aqueles que acabavam de ser expostos. Depois dessa resposta,
Clemente retirou-se para a sua casa, refletindo naquilo que lhe fora dito e
também no que ele próprio dissera.
Chereas, porém, estava muito preocupado com a possibilidade
de vazar o segredo, por isso foi naquele mesmo instante procurar Cornélio
Sabino, que também era comandante de uma companhia de guardas do imperador.
Sabedor de que ele era um homem muito valente e apaixonado pelo bem público, e
que sofria com impaciência o estado deplorável a que estava reduzido o império,
julgou conveniente contar-lhe o seu intento, para obter a sua opinião em um
assunto tão importante. Ele não se enganou em seu julgamento, pois Sabino
experimentava os mesmos sentimentos, porém nada manifestava por não se atrever
a confessá-los a ninguém. Ele escutou as palavras de Chereas com prazer,
prometendo guardar segredo e até mesmo ajudá-lo.
Estavam todos de acordo em que não havia tempo a perder e
foram imediatamente procurar Minuciano, cuja virtude e generosidade era deles
bem conhecida. Ciente de que era suspeito a Caio, por causa da morte de Lépido,
seu amigo íntimo, ele era muito sensato para não perceber que correriam grande
perigo, ainda que não houvesse outro motivo senão o próprio mérito deles, mas
isso já era o suficiente para se temer o maligno príncipe. Todavia, era seguro
confiar em Minuciano, pois, ainda que a magnitude do perigo impedisse que
qualquer um deles manifestasse abertamente o ódio sentido por Caio, todos eles
já haviam, em outras circunstâncias, dado a conhecer que a tirania do imperador
lhes era insuportável, e essa conformidade de sentimentos já estabelecera entre
eles uma certa amizade.
O respeito de Chereas e de Sabino pela nobreza e pela
extraordinária virtude de Minuciano os fez decidir que, em vez lhe falar
diretamente sobre o assunto, iriam esperar que ele lhes desse oportunidade para
isso. A idéia deu resultado. Como todos sabiam que o imperador tinha o costume
de dar como senha a Chereas uma palavra ultrajosa, Minuciano perguntou-lhe qual
a palavra que lhe fora dada naquele dia. Chereas, alegre por aquela
oportunidade tão favorável e sem nada temer da probidade de um homem como
Minuciano, respondeu-lhe: "Dai-me, por favor, a palavra liberdade!"
Ele acrescentou: "Como sou feliz e como vos sou grato,
pois me fazeis notar em vosso semblante que estais me exortando a empreender
uma coisa pela qual estou inflamado de ardor. Não é preciso mais para me levar
a executá-la. E-me suficiente ver que a aprovais e que antes mesmo de falarmos
já tínhamos o mesmo modo de pensar. Esta espada que vedes será suficiente para
vós e para mim. Não há tempo a perder, e estou pronto a empreender qualquer
coisa sob o vosso comando. Ordenai, somente, e sereis obedecido. Não importa
que não tenhais espada, pois tendes aquela grandeza de alma de onde o ferro
tira toda a sua força. Desejo entrar em ação, e não me preocupo com o que me
poderá acontecer. Poderia eu pensar, sem vexame, em minha segurança pessoal
quando vejo a liberdade pública oprimida, as leis violadas e todos os homens do
império expostos ao furor desse tirano? Ouso mesmo crer que não sou indigno de
ser o executor de um tão grande missão, pois tenho os mesmos sentimentos que
vós".
Minuciano, ao ouvir Chereas falar desse modo, abraçou-o,
louvou a sua generosidade e exortou-o a perseverar, e ambos separaram-se,
rogando aos deuses que lhes fossem favoráveis. Alguns afirmam que um outro fato
animou Chereas ainda mais: quando ele entrava no palácio, ouviu uma voz que lhe
dizia para não temer executar o que havia resolvido e tivesse a certeza da
assistência dos deuses. Essas palavras de início o assustaram, pois julgou que
o plano fora descoberto, mas depois não duvidou de que era algum dos conjurados
que assim lhe falava para animá-lo ainda mais ou uma voz do céu a testemunhar
que Deus não deixa de cuidar dos interesses dos homens.
Nesse meio tempo, todavia, estavam todos convencidos de que
da morte de Caio dependia a salvação do império, e cada qual, à porfia,
conspirava para dele livrar o mundo. O número de conjurados então já era
grande, pois havia também senadores e cavaleiros envolvidos. Uniu-se também a
eles Calixto, um liberto de Calígula que, mais que qualquer outro, estava junto
dele e que se tornara tão temível que podia ser chamado companheiro de tirania
do imperador. Ele não somente era muito poderoso pelo seu prestígio, mas também
pelas grandes riquezas que havia adquirido, vendendo o seu favor aos que o
corrompiam com presentes. E assim, ele usava de modo muito insolente o seu
poder.
Ele, porém, conhecia o espírito de Caio e sabia que quando o
imperador começava a suspeitar de alguém jamais o perdoava. E, mesmo que não
houvesse outra razão para temer, os muitos bens que possuía eram suficientes
para que esse temível senhor desejasse matá-lo. Assim, trabalhava secretamente
para se colocar nas boas graças de Cláudio, que talvez sucedesse a Caio no
império. Disse-lhe que o imperador lhe havia ordenado que o envenenasse, mas
ele se havia servido de diversos pretextos para diferir a execução daquela
ordem tão cruel. Para mim, creio que era invenção com o propósito de granjear
mérito perante Cláudio, pois, se Caio tivesse dado essa ordem, não havia
probabilidade de Calixto não ser castigado em seguida, por ter deixado de
cumpri-la. Cláudio, no entanto, ficou convencido de que os deuses usaram
Calixto para salvá-lo do furor de Caio e agradeceu-lhe muito por se recusar a
executar aquele serviço.
A realização dos desígnios de Chereas estava sendo adiada
por causa da morosidade de alguns conjurados, embora ele afirmasse que todo
tempo era próprio para levar a efeito o que pretendiam, quer enquanto Caio se
dirigia ao Capitólio para oferecer sacrifícios por sua filha, quer no momento
em que do alto de seu palácio lançava ao povo, na praça, moedas de ouro e de
prata, quer durante a celebração de certas cerimônias que ele mesmo havia
instituído. Embora estivesse sempre rodeado de pessoas prontas a defender a sua
vida, o imperador de nada desconfiava e julgava-se em perfeita segurança. Desse
modo, Chereas, aflito por tão longa demora e com medo de que a ocasião viesse a
faltar, perguntou aos parceiros se eles julgavam que os deuses haviam tornado o
tirano invulnerável. E dizia que, quanto a ele, não teria nenhuma dificuldade
em matá-lo, mesmo que não tivesse uma espada.
Todos louvavam o seu amor pelo bem público, mas julgavam
necessário protelar um pouco, de modo que, diziam eles, se a coisa não saísse
bem, a cidade não se pusesse em rebuliço, e também por causa das investigações
que se fariam contra eles, tirando aos outros o meio de executar esse intento
enquanto ainda tinham a coragem de tentá-lo. Eles achavam mais conveniente
aproveitar a ocasião dos jogos instituídos em honra a César* — o qual, para se elevar
ao soberano poder, foi o primeiro a suprimir a liberdade dos romanos, mudando a
república em monarquia — porque, além da grande multidão de povo que acorria ao
teatro, que então se situava em frente ao palácio, todas as pessoas
pertencentes à nobreza de Roma para lá se dirigiam com as suas mulheres e
filhos. O imperador lá se encontraria também, e seria difícil, em tão grande
aperto, que aqueles que velavam pela sua segurança pudessem então protegê-lo do
ataque dos conspiradores.
Chereas aceitou a sugestão e adiou a execução para o
primeiro dia dos jogos, porém o destino prevaleceu sobre essa deliberação e,
com dificuldade, só o puderam fazer no terceiro dia, que era o último desses
espetáculos. Antes, Chereas reuniu os conjurados e falou-lhes: "Que censuras
não merecemos por esse tempo que passou sem que tentássemos executar o nosso
plano! Pois temos motivos para temer que, se formos descobertos, Caio venha a
redobrar o seu furor, e, em vez de darmos liberdade ao império pela sua morte,
iremos apenas, com a nossa fraqueza, contribuir para lhe fortalecer a tirania.
É assim que devemos trabalhar pela nossa segurança e pela de tantos povos? Será
esse o meio de adquirirmos fama e glória imortais?" Ninguém ousou
contradizer um discurso tão corajoso: estavam todos tão atônitos que ficaram em
silêncio.
Ele acrescentou: "Acaso pretendeis adiar ainda mais?
Não sabeis que hoje é o terceiro dia — o último — destes jogos e que Caio está
prestes a embarcar para Alexandria, a fim de conhecer o Egito? julgais então
que devemos deixar escapar esse monstro, que causa horror à natureza, ou
permitir que ele triunfe tanto por mar quanto por terra, sobre a fraqueza dos
romanos? Ou desejais que algum egípcio mais corajoso que todos nós tenha a
honra de restaurar, pela morte desse tirano, a liberdade oprimida? Quanto a
mim, estou resolvido a não perder mais tempo em vãs deliberações, e o dia não
passará sem que eu me desobrigue do que devo à minha pátria. O que a sorte
determinar, receberei com alegria. Prefiro isso a tolerar que um outro me
arrebate a glória de libertar o mundo de um homem que a todos aterroriza".
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* A continuação nos dá a entender que é de Augusto que ele
está falando.
Chereas, assim falando, fortaleceu-se ainda mais em sua
resolução e entusiasmou de tal modo os outros que todos se sentiram arder no
desejo de cumpri-la, sem mais adiamentos. Aconteceu que por acaso aquele era o
dia em que Chereas devia pedir a senha ao imperador, e assim ele entrou no
palácio com a espada erguida, segundo o costume, que obriga o comandante da
guarda a assim fazer quando em cumprimento de um dever do cargo. Uma grande
multidão de povo já se encontrava no palácio, e todos procuravam obter um
lugar, porque não havia reservas nem para os senadores nem para os cavaleiros:
cada qual se punha onde queria, misturando-se homens com mulheres e senhores
com escravos — o imperador sentia prazer em ver essa desordem. Em seguida, fez
um sacrifício a Augusto, em honra do qual os jogos eram celebrados;
Aconteceu que uma gota de sangue da vítima caiu sobre as
vestes de Asprenas, que era um dos senadores, o que lhe serviu de péssimo
augúrio, pois ele foi morto no tumulto que se levantou em seguida. Caio riu-se
à vontade, e notou-se, com espanto, como uma coisa extraordinária, que o
imperador, contra a sua natureza, naquele dia demonstrava grande afabilidade e
bom humor. Terminado o sacrifício, Caio, acompanhado por aqueles a quem mais
estimava, foi sentar-se no teatro, no lugar que lhe fora preparado. O teatro
era de madeira e construído todos os anos. Tinha duas portas: uma no exterior,
que dava para a grande praça, e outra em frente ao pórtico, por onde os atores
entravam e saíam sem incomodar os espectadores. Fizera-se também uma passagem
dividida por uma cerca de madeira, onde os atores e os músicos se colocavam.
Depois que todos tomaram os seus lugares, Chereas e os
demais comandantes da guarda ficaram bem próximos do imperador, que se havia
posto do lado direito do teatro. Batívio, senador, que havia sido pretor,
perguntou baixinho a Clívio, que já fora cônsul e que estava sentado perto
dele, se não tinha ouvido falar de nada. Tendo este respondido que não, Batívio
acrescentou: "Vereis hoje representar-se uma peça que acabará com a
tirania". Clívio retrucou: "Cale-se, para que algum grego não nos
venha a escutar". Com essas palavras, ele fazia alusão a um verso de
Homero. Em seguida, foi atirada ao público grande quantidade de frutas, e
pássaros muito belos e raros também foram soltos. Caio sentia prazer em ver os
pássaros disputando as frutas e o modo como o povo se esforçava para
apanhá-los.
Aconteceram em seguida duas coisas que poderiam passar por
presságios: a primeira, que no teatro se representava um juiz, o qual, tendo
sido acusado de um crime, fora punido com a pena de morte; a outra, que se
apresentava a tragédia de Cinira, na qual ela e Mirra, sua filha, eram mortas.
Ao redor dessas três pessoas, foi espalhada uma grande quantidade de sangue,
que se havia trazido para esse fim, ao se lhes representar a morte. Acrescente-se
a isso que fora naquele mesmo dia que Filipe, filho de Amintas, rei da
Macedônia, tinha sido outrora morto por Pausânias, um de seus amigos, quando ia
para o teatro.
Como aquele era o último dia da festa, Caio estava para
resolver se ficaria até o fim ou se iria tomar o seu banho e cear, para
regressar em seguida, como de costume. Minuciano, que estava sentado perto dele
e tinha visto Chereas sair, temendo que viesse a faltar a oportunidade de se
executar o plano, levantou-se para ir animá-lo. Mas Caio o agarrou pelo manto e
disse-lhe, de maneira obsequiosa: "Onde vais agora, homem de bem?"
Essas palavras o detiveram, e ele tornou a sentar-se. Porém, não podendo vencer
aquele temor, levantou-se uma segunda vez, e Caio não tentou mais retê-lo, pois
imaginou que ele tivesse alguma necessidade urgente, que o obrigava a sair.
Logo em seguida, Asprenas, que estava ciente de tudo, convenceu o imperador de
que era melhor ir ao banho e cear, para depois voltar ao espetáculo.
Chereas, no entanto, havia colocado cúmplices nos lugares
mais próprios para o seu intento e, ansioso por causa da demora, pois já era a
nona hora do dia, resolveu voltar ao teatro e terminar logo o trabalho. E,
ainda que soubesse que esse gesto poderia custar a vida de algum senador ou cavaleiro,
considerou que a liberdade pública era preferível à conservação da vida de
alguns cidadãos. Mas quando ele se dirigia para o teatro, um rumor que ouviu
deu-lhe a entender que Caio havia saído para ir ao palácio. Os conspiradores,
nesse momento, romperam a multidão, como se fosse por ordem do imperador, mas
na realidade era para matá-lo mais facilmente, quando ninguém mais estivesse
entre eles e o soberano. Cláudio, seu tio, Marcos Vinício, que desposara a sua
irmã, e Valério Asiático, procônsul, os quais, pela sua condição, não podiam
ser impedidos de se retirar, caminhavam diante dele. Paulo Arúncio ia atrás
dele.
Depois de entrar no palácio, Caio deixou o caminho comum,
que Cláudio e os que iam diante dele haviam tomado, onde os oficiais da casa esperavam
para ir ao banho, e seguiu por um caminho escondido, a fim de ver a exibição de
uns moços que lhe haviam trazido da Ásia para cantar hinos nas cerimônias e nos
sacrifícios que ele havia instituído e para dançar no teatro as danças das
quais Pirro é o autor. Chereas então aproximou-se para pedir-lhe a senha, e
Caio não deixou de lhe dar, segundo o costume, uma palavra para
ridicularizá-lo. Chereas revidou a injúria com outra e com um golpe de espada,
que no entanto não foi mortal.
Alguns querem crer que ele o fez de propósito, a fim de que,
antes de morrer, Caio pudesse receber ainda outros golpes e para que o castigo
pelos seus crimes lhe fosse mais doloroso. Isso, todavia, me parece pouco
provável, pois não se costuma raciocinar em semelhantes ações. Se Chereas tinha
mesmo essa intenção, estimo que ele tenha sido o mais tolo de todos os homens,
deixando-se levar desse modo pelo ódio que nutria por Caio e preferindo essa vã
satisfação a livrar a si mesmo e a todos os seus cúmplices do perigo em que se
encontravam. Enquanto vivesse, Caio não ficaria sem defensores, ao passo que,
estando morto, os conjurados poderiam escapar à sua vingança antes que houvesse
ocasião de serem descobertos. Deixo, porém, a cada qual que faça o juízo que
bem quiser.
O golpe que Caio recebeu atingiu-o entre o pescoço e o
ombro, e teria avançado mais se não tivesse encontrado o osso. Ele sentiu
grande dor, mas não gritou nem chamou ninguém em seu auxílio. Soltou apenas um
suspiro, talvez porque o medo o tenha feito perder a fala, ou porque
desconfiava de todos ou ainda por causa de sua natural altivez. Gemendo, ele
tentava fugir, quando Cornélio Sabino o segurou e o fez cair de joelhos. Os
outros conspiradores então rodearam-no gritando: "Mais um! Mais um!"
E acabaram de matá-lo.
Dentre os muitos golpes que recebeu, diz-se que Áqüila
desferiu o que livrou o império, por sua morte, daquela intolerável tirania. No
entanto, cabe a Chereas a principal glória, pois ainda que vários outros
tivessem tomado parte na empresa, ele foi o primeiro a conceber a idéia, a
infundi-la nos outros e a propor os meios de executá-la. E depois, vendo-os
assustados com a grandeza do perigo, renovou-lhes a coragem. Por fim, logo que
se apresentou a ocasião, atacou o tirano, deu-lhe o primeiro golpe e o deixou
semimorto aos demais, para que lhe tirassem o que ainda restava de vida. Assim,
podemos dizer com verdade que se deve atribuir à sua coragem e à sua ação toda
a honra que os seus cúmplices mereceram.
Depois de tão grande feito, por causa do perigo em que os
punha a morte de um imperador loucamente querido pela populaça e que mantinha
muitos soldados, a dificuldade era retirar-se. Como lhes pareceu impossível
voltar por onde haviam entrado, porque aquelas passagens eram muito estreitas e
estavam cheias de oficiais e de guardas, que o dever do ofício reunira naquele
dia de festa, saíram por outro caminho para o palácio de Germânico, cujo filho
haviam acabado de matar. Esse palácio estava muito perto do palácio do
imperador, ou melhor, fazia parte dele, tal como outros, construídos pelos
imperadores precedentes, sendo que cada qual traziam o nome de seu construtor.
Assim, tendo escapado da multidão, saíram com segurança, antes que a notícia da
morte de Caio se houvesse divulgado.
Os primeiros a perceber que Caio havia sido assassinado
foram os alemães da guarda — a chamada a legião céltica. Eram todos soldados
que ele havia escolhido entre os daquela nação para estar perto de sua pessoa.
Dentre os povos bárbaros, eles são os mais coléricos porque, na maioria das
vezes, não compreendem o que se passa. São homens extremamente robustos e, como
de ordinário enfrentam os maiores ataques dos inimigos, contribuem não pouco
para fazer pender a vitória para o lado daquele por quem combatem. A morte do
imperador lhes foi muito sentida. Não porque lhe consideravam os méritos, mas
pelo seu próprio interesse, pois ninguém era mais bem tratado que eles. Caio,
para lhes conquistar o afeto, usava para com eles de grande prodigalidade.
Eram então comandados por Sabino, que não fora elevado
àquele cargo por sua virtude nem pela de seus antepassados, pois ele havia sido
gladiador, mas por causa de sua força extraordinária. Tendo-o à frente, os
soldados correram para todos os lados, de espada na mão, a fim de matar os que
haviam assassinado o imperador. O primeiro que encontraram foi Asprenas, para o
qual, como já dissemos, havia ocorrido um mau presságio, aquela gota de sangue
da vítima que caíra sobre a sua túnica, e o fizeram em pedaços.
Em seguida encontraram Norbano, cuja origem era tão ilustre
que ele contava entre os seus antepassados vários generais. E, como não era
menos forte que corajoso, quando viu que aqueles bárbaros não respeitariam a
sua condição, arrancou a espada da mão de um deles, decidido a não morrer sem vender
muito caro a vida, pois eles o haviam rodeado de todos os lados. Por fim,
vencido pelo número, caiu varado de golpes.
O terceiro dos senadores a experimentar a raiva dos alemães
foi Anteio, o qual pagou com a vida o desejo de ver o corpo de Caio. Como o
ódio que lhe votava não podia ser maior nem mais justo, porque esse cruel
príncipe, não se contentando em lhe exilar o pai, mandara-o matar no seu
desterro, ele saciava os olhos com aquele espetáculo, que lhe era assaz
agradável, quando vários soldados vieram em sua direção. Fugiu para se
esconder, mas não pôde evitar de cair nas mãos daqueles homens furiosos, que
não poupavam nem os inocentes nem os culpados.
Quando se espalhou a notícia de que o imperador acabara de
ser morto, havia em todos os espíritos mais espanto que crédito. Os que havia
muito tempo desejavam ardentemente a sua morte tinham dificuldade em acreditar,
pois desconfiavam que a informação partira do próprio Caio. Outros não queriam
crer porque não desejavam que fosse verdade e nem podiam imaginar que alguém
tivesse pensado e muito menos executado tão temerário empreendimento.
O número desses últimos era composto de soldados, mulheres,
moços e escravos. De soldados porque, além do soldo, eles tinham parte na
tirania e nos roubos do detestável imperador, que lhes permitia ofender impune
e insolente-mente os mais ilustres cidadãos; de mulheres e moços porque eles se
divertiam com os espetáculos, os combates de gladiadores e outros divertimentos
em que Caio era pródigo, sob pretexto de querer contentar o povo, mas na
verdade o fazia para satisfazer à própria crueldade e loucura; de escravos
porque ele lhes dava liberdade não somente para desprezar, mas também para
acusar falsamente os seus senhores, sem temor de qualquer castigo, pois nada era
mais fácil que obter desse príncipe o perdão pelas calúnias — e eles sabiam
que, dando notícia do dinheiro que os seus senhores possuíam, obteriam a
liberdade e a oitava parte do confisco, destinada aos denunciadores.
797. As pessoas da nobreza — embora algumas, ou porque
desejavam a morte do imperador ou porque tinham algum conhecimento da
conspiração, acreditassem que a notícia era verdadeira — não ousavam manifestar
a sua alegria nem mesmo demonstrar que escutavam o que se dizia, de modo que,
se fossem enganados em suas esperanças, não pagassem caro pela exposição de
seus sentimentos. Os mais bem informados sobre a conspiração eram os mais
reservados, porque não se queriam tornar suspeitos àqueles que desejavam que
Caio ainda vivesse, os quais não os deixariam viver se a notícia fosse falsa.
Correu também insistentemente o boato de que o imperador havia sido ferido, mas
não estava morto.
Não se sabia, portanto, em que acreditar, pois os que davam
as notícias ou eram suspeitos de favorecer a tirania ou a odiavam tanto que não
se podia prestar fé ao que eles diziam, pois estes eram movidos, mais que
qualquer outra coisa, pelo desejo de que fosse verdade. Aquele boato sucedeu
outra notícia, que perturbou ainda mais a nobreza, pois dizia que Caio, sem
permitir que lhe tratassem as feridas, se dirigia ensangüentado à praça, para
falar ao povo. Essas notícias suscitaram movimentos diferentes, segundo as
disposições de cada espírito, e ninguém ousava sair do lugar com medo de ser
caluniado, porque todos sabiam que não se julgavam as ações conforme os
pensamentos que se tinham verdadeiramente, mas pela maneira como os delatores e
os juizes as interpretavam.
Estando as coisas nesse pé, vieram os alemães e cercaram o
teatro. Todos então imaginaram-se perdidos, acreditando que seriam degolados em
seguida e julgando que corriam o mesmo perigo, tanto se permanecessem onde
estavam quanto se optassem pela fuga. Assim, não sabiam o que fazer. Quando os
alemães venceram a massa e chegaram ao teatro, ouviram-se os rumores confusos
de mil vozes de pessoas, as quais rogavam que não lhes fizessem mal, pois, não
importando de que modo acontecera a morte do imperador, eles não haviam
absolutamente tomado parte nela. As lágrimas e os gemidos acompanhavam as
palavras do povo, e eles tomavam os deuses como testemunhas de sua inocência.
Nada esqueciam diante do temor que aquele iminente perigo lhes inspirava.
Por maior que fosse o furor dos alemães, eles não
conseguiram permanecer insensíveis a tantos gritos e lágrimas. Comoveram-se
também ao ver a cabeça de Asprenas e as dos outros que eles haviam matado
colocadas sobre um altar — por eles mesmos, porque as haviam trazido de onde se
encontravam. O horrível espetáculo da infelicidade de tantas pessoas de classe
não somente causava compaixão às pessoas da nobreza e ao povo como os fazia
tremer, porque não tinham a certeza de que sairiam ilesos de tão grande perigo,
enquanto a alegria daqueles que tinham motivo para odiar Caio era perturbada
pelo temor de não saberem se continuariam vivos.
Nesse mesmo tempo, um pregoeiro público, de nome Arúncio,
que tinha uma voz muito forte e era muito rico e querido pelo povo, apareceu no
teatro em vestes de luto e com todas as demonstrações de grande dor. Embora ele
odiasse Caio, dissimulava a alegria que estava sentindo. E, juigando que
importava dar a conhecer a todos que o príncipe realmente havia morrido, fez o
anúncio em alta voz, a fim de que ninguém mais pudesse duvidar. Dessa maneira,
ele conseguiu deter os alemães, e os oficiais ordenaram-lhes que recolocassem a
espada na bainha.
Essa declaração pública da morte do imperador foi a salvação
de um grande número de pessoas. Até ali havia o risco de morrerem, pois a fúria
dos alemães e a sua dedicação a Caio eram tão grandes que enquanto lhes
restasse alguma esperança de lhe salvar a vida não haveria violência ou
crueldade que não estivessem dispostos a praticar para vingar a conspiração.
Mas a certeza de sua morte desarmou-lhes a cólera, porque não podiam mais lhe
dar provas de seu afeto nem receber dele os costumeiros favores. Além disso,
tinham agora motivo para temer um castigo da parte do senado, caso este viesse
a governar.
Nesse ínterim, Chereas, temendo que Minuciano sofresse
alguma violência dos alemães, rogou com tanta insistência aos soldados que
tivessem cuidado pela conservação de sua vida que eles o trouxeram até ele,
vindo também Clemente. Então essa grande personagem e também outros senadores
disseram a Chereas que a ação que ele acabava de praticar não podia ser mais
justa; que não se podia louvar o suficiente o fato de ele haver organizado com
tanta coragem aquele grande empreendimento e tê-lo tão valorosamente executado;
que a tirania tem de próprio crescer em pouco tempo pelo prazer que sente em
poder impunemente fazer mal a todos; que o ódio dos homens de bem que se
insurgem contra ela, todavia, faz com que os tiranos percam repentina e
miseravelmente a vida; que bem se via um exemplo disso na pessoa de Caio, pois
não tinha receio de violar as leis nem de ofender os amigos, tornando-os inimigos;
e que, assim, ainda que ele tivesse recebido a morte de suas mãos, na verdade
ele próprio provocara o seu fim.
Os guardas se retiraram do teatro, e os que se haviam
reunido em grande número para assistir aos jogos, após tão grande tribulação,
começaram a se levantar, a fim de se colocarem em segurança. Tiveram essa
oportunidade quando um médico, de nome Arciom, ao qual haviam obrigado a curar
alguns dos feridos, fez sair os seus amigos, sob o pretexto de que iriam buscar
medicamentos, mas na realidade os estava afastando do perigo.
798. O senado reuniu-se em seguida no palácio. O povo
acorreu em massa e com tumulto para a grande praça do mercado. Um e outro
pediam castigo para os que haviam matado o imperador — o povo com ardor, e o
senado, apenas na aparência. Uma tão grande comoção obrigou o senado a mandar
buscar Valério Asiático, que fora cônsul. O povo lhe dizia, com impaciência,
que não compreendiam como ainda não estavam presos os conspiradores. E,
perguntando-lhe quem havia sido o autor do assassinato, ele respondeu:
“Desejaria ter sido eu”.
O senado publicou em seguida um decreto, pelo qual condenava
a memória de Caio e ordenava a todos que se retirassem: os cidadãos romanos
para as suas casas e os soldados para os seus quartéis. Prometiam aos primeiros
uma grande diminuição de impostos, e aos últimos, recompensas, se eles
permanecessem em seu dever. Isso porque havia o temor de que eles, caso se
sentissem desgostosos, praticassem em Roma toda espécie de violência e, não se
contentando em saquear as casas particulares, fossem levados a cometer
sacrilégios, não poupando nem mesmo os Templos. Os senadores assistiram todos a
essas deliberações, e os que haviam feito parte da conspiração não somente
foram os primeiros a chegar como também tinham esperanças de que o senado
retomasse a sua antiga autoridade.
Que o Santo Espirito do Senhor, ilumine
o nosso entendimento
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